quarta-feira, 17 de agosto de 2011

PINTOR MOÇAMBICANO, MALANGATANA HOMENAGEADO EM TAVIRA

A Associação Internacional de Paremiologia/International Assocition of Paramiology (AIP/IAP), com a apoio da Câmara Municipal de Tavira vai homenagear o pintor Malangatana Valente Nowenya (1936-2011), de nacionalidade Moçambicana.
O programa tem início no dia 20 de Agosto, sábado, pelas 14H30, no Auditório da Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, com a presença do Embaixador da República Popular de Moçambique em Portugal, Miguel da Costa Mkaima.
Após os cumprimentos oficiais, será projectado o filme documentário “Ngwenya o Crocodilo” sobre a vida e obra do pintor moçambicano, seguido de debate.
Do programa consta também a visita à exposição de pintura “Contrastes: Homenagem ao pintor Malangatana”, da autoria de Verónique Tello, patente no Salão da Junta de Freguesia de Santiago.


Sobre o pintor e com este título, Isabel Noronha, escreveu o texto que se transcreve:

“O PINTOR

A chuva que começou a cair em Matalana quando devolveram o Pintor à terra que o viu nascer, não mais cessava. Em vão tentava lavar as sombras que haviam descido sobre as gentes desse pacato lugar, de onde a mão desse invulgar homem recolhia a luz de cada aurora, decompondo-a em infinitas cores que transmutava, na translúcida tela da sua vida. Estremecedores risos, desafinados mas sentidos cânticos, cujo eco tudo em seu redor enchia, derramavam em cada manhã o gesto durante toda a noite contido na mão que, à luz do candeeiro de petróleo, tracejava o rasto das sombras na tela em que guardara a última luz do entardecer. E Matalana despertava, com esse sino-voz saudando à chegada do sol, o início de mais um dia.
Durante toda a noite, o tempo escorrera lento sobre as telas expostas entre as árvores da floresta de Wamachacanana ao olhar de todos os deuses e espíritos que o Pintor em vida convocara, para juntos, pela sua mão, preservarem daquele lugar a sua mais profunda essência: cada uma das infinitas tonalidades da luz que de dia se soltavam da floresta para percorrer, em infantis passos, os estreitos caminhos de areia vermelha; cada um dos estremecedores sons que, a coberto das asas dos pássaros nocturnos, indicavam a passagem, pelos mesmos carreiros, dos espíritos que habitavam os sonhos de cada um.
Durante toda a noite, líquidos dedos haviam lavado, em líquidas linhas, os traços de luz espalhados pelas telas do Pintor. Matalana, acordaria sob o som oco da chuva batendo nas telas e pequenos riachos das mais diversas cores correndo pelos carreiros, desenhando pequenos arco-íris na terra vermelha. Toda a manhã, os olhares guardados atrás das paredes de caniço, espreitariam ansiosos o cessar da chuva que, inclemente, devolvia à terra cada gesto desse estranho homem que dedicara a sua vida a coleccionar pedaços vivos de luz para costurar com eles a camisa de retalhos com que cobria o seu peito, onde precocemente se tinham alojado todas as sombras da floresta. As mulheres, tentariam a muito custo conter no exíguo espaço do interior das palhotas, a ânsia das pernas e braços das inúmeras crianças de se alongar na chuva, de alcançar com as mãos o céu: aos rapazes entregariam a infindável tarefa de tentar acender o fogo com lenha molhada; às meninas a impossível tarefa de fazer calar na beleca a fome dos mais pequenos. Tudo na pequena aldeia era agora uma estranha e angustiante sinfonia em que as vozes, apertadas no exíguo raio circular das casas, se soltavam pelas infinitas aberturas do caniço e compunham um informal coro, que o som pouco ritmado da chuva batendo nas suspensas telas do Pintor, não conseguia compassar. A meio da tarde, a chuva acompanhava já uma algazarra de vozes amarradas nos estreitos espaços, atiradas para o centro das fogueiras acesas dentro de casa embora ainda fosse de dia, já esquecidas do motivo porque não se podiam livremente soltar.
De costas voltadas para as réstias de luz que, entre os pingos de chuva, teimavam em passar por entre as frestas das paredes de caniços, nenhum adulto reparou que uma porta se abria, soltando na alegria da chuva as pernas e braços de um menino que correu veloz entre a alameda de mangueiras, chapinhou nos riachos de tinta e, enterrando os pés coloridos até aos tornozelos com as mais diversas cores na areia branca, chegou junto ao florido jardim que a multidão plantara no dia anterior, entre os cajueiros. Ofegante, pousou a mão sobre a gigantesca pedra e retirou com os seus pequenos dedos a água das concavidades das letrinhas cavadas na lisura fria da pedra:
- posso emprestar uma das tuas flores, vovô? É para oferecer a uma menina …- perguntou em voz baixa, para que nenhuma das outras crianças que mesmo sem olhar para trás sabia silenciosa e timidamente o seguirem, ouvisse. A resposta chegou, entre o som de pequenos passos aproximando-se de si na areia molhada. Imóvel, tentando não perder nenhuma das palavras que lhe chegavam sussurradas, viu uma pequena mão se estender e, timidamente, retirar da jarra pousada sobre o nome do Pintor, a mais bonita, vermelha e brilhante de todas as flores que a chuva delicadamente regava. Só então se voltou, para descobrir o sorriso da menina que, sem esperar que ele lhe oferecesse a flor, a entregava já para segurar à pequena criança que trazia às costas.
No mesmo instante, Matalana ganhou cor: dezenas de flores tombadas no chão se soltaram no ar em infantis gestos, centenas de dedos alegres recolheram dos riachos areia vermelha misturada com as mais diversas cores e a espalharam de novo sobre as telas brancas, rindo alegremente quando a chuva, brincando, as devolvia à terra. Tal era a euforia, que nenhuma criança reparou em que momento a chuva deixou de cair e as cores passaram a permanecer na tela branca.
E jamais o menino que tivera a coragem de abrir, silenciosamente, a porta da morte para nela colher uma flor, contaria o que lhe segredara a voz do Pintor: que cada flor colhida no chão do Tempo, devia ser a ele devolvida com um traço, desenhado pela sua mão, numa das telas brancas espalhadas na Floresta da Vida.

Isabel Noronha
15 de Janeiro de 2011”